CURA DAS
RELAÇÕES
A Cura das Relações perpassa todas as outras curas, uma vez que ela é uma disposição necessária a todas elas. Para caminharmos em direção à Cura dos Pensamentos, dos Sentimentos, das Trocas, e do Ventre da Mãe-Terra, a forma como as pessoas dentro da modernidade se relacionam umas com as outras, com os próprios pensamentos e sentimentos, com outros povos, com os seres vivos não humanos, com os seres espirituais, os encantados e os ancestrais, e com a Mãe- Terra em seu papel de sustentar e possibilitar a existência de vida na Terra precisa mudar radicalmente.
Por isso que o Cacique Ninawá Huni Kui costuma dizer que "uma cura traz a outra". Para ele, as relações do ser humano com a natureza estão sendo perdidas dia após dia, especialmente a capacidade de nos comunicarmos com os outros seres e elementos, com os animais, as plantas e as estrelas. Para os Huni Kui, a sacralidade da relação com Yube, a jibóia sagrada, ou com outros seres sagrados da floresta, está sendo comprometida quando a natureza é vista somente como recurso, como um bem material, de valor apenas econômico. A importância de uma árvore, em sua sabedoria, mas também no quanto gera de oxigênio, fertilizantes e nutrientes para a Mãe-terra (e para todos nós) não cabe nas formas da sociedade moderna/ocidental/ colonial de mensurar valor.
Para os povos indígenas, Cacique Ninawá afirma, a existência não faz sentido sem essa conexão espiritual com os seres não humanos. A música Huni Kui, por exemplo, ligada ao sagrado e ao espiritual, é cantada também para a natureza ouvir.
Assim, quando um curandeiro vai para a floresta retirar uma planta medicinal, a planta também escuta essa música, e isso é parte do processo de cura. A Cura das Relações depende da sustentação desses saberes e relações, e por isso, é fundamental que os jovens mantenham essa essência viva, pois há sempre um ancião disposto a repassar esses saberes para as futuras gerações e manter pulsante o grande cordão umbilical que nos liga a Terra de geração em geração. Sem esse conhecimento, não há possibilidade de cura, e uma árvore permanecerá sendo vista apenas como madeira.
Mateus Tremembé aprendeu com seus troncos velhos que "quem canta reza duas vezes". Os cantos são também uma forma de cura para o povo Fulni-ô. Através deles, o povo é relembrado por exemplo sobre o papel das entidades não humanas na criação e sustentação da vida. Para eles, essas entidades são as donas de nossos passos na Terra. Essa proposição é uma lição de humildade, uma forma de ensinar o povo a controlar o ego, e entender que estamos aqui a serviço, e por tempo determinado.
Yoran Fulni-ô entende que a impossibilidade de controlar o tempo nos ensina sobre entrega e integração a uma inteligência coletiva. Para Rosa Pitaguary, respeitar os movimentos e tempos de cada um, sua hora de agir, sua hora de aceitar, é algo necessário para processos de reconciliação. Adquirir sensibilidade nessas temporalidades é se relacionar com os outros da forma que são, e não da forma como gostaríamos que fosse. E esse olhar vale também para si mesmo.
Construir uma relação profunda consigo mesmo, conhecendo os movimentos de se recolher, voltar ao útero, e refazer a saída é condição para ampliar a capacidade de se relacionar com o todo.
Para Nadya Pitaguary, o tempo é apenas transformação e não fim, porque os corpos e espaços se transformam, mas o universo se mantém. Ao tirarmos os calçados e colocarmos os pés na terra, nos sentimos Terra, nos percebemos como Terra, e abrimos caminho para sermos planeta e parte do universo.
O universo e o útero se encontram e se espelham, em suas movimentações para gerar a vida. É preciso perceber o grande universo e a relação que temos com ele, mas para isso precisamos nos questionar sobre uma miríade de relações. Qual nossa relação com a Terra? Com os ventos? Com o povo das águas? Com os pássaros? Com nós mesmos?
Pajé Barbosa, do povo Pitaguary, enxerga a lua como vetor desta conexão com o universo, tanto em sua parte iluminada em relação ao sol, quanto na parte escura, no segredo, no silêncio meditativo e na conexão com os ancestrais. Por isso as mudanças de fases da lua são momentos de pajelança, de pedidos e relação com os seres da noite.
Adriana, liderança do povo Tremembé da Barra do Mundaú, considera a relação com a Mãe-Terra parecida com uma relação de troca, expressa nos espaços sagrados e através dos rituais e uso das plantas medicinais. Mas não é apenas isso, essa relação é engrandecida por envolver cuidado e proteção. A Mãe-Terra sustenta e dá orientações para nos fortalecermos. Para nos mantermos vivo, intactos e com força, precisamos estar dentro dessa teia de relações.
Mateus Tremembé, porém, reforça que essa relação depende de continuidade, não basta pedir cura uma vez e abandonar a relação com a Mãe-terra. É preciso continuamente fortalecer essa relação, e seguir trabalhando pelo agora e pelas próximas gerações. Criar e sustentar essas relações leva tempo, e possivelmente mais tempo ainda quando elas são perdidas ou danificadas.
Expandir relações expande também nossos sentidos e capacidade de se relacionar, e permite descobrir às ancestralidades e espiritualidades presentes em nosso território. Para Ubiraci Pataxó, as relações, sentidos e sentimentos estão ligadas de forma bastante íntima. Os sentimentos são o que une, a cola das relações, e os processos de cura precisam do encontro com reverência a alteridades, e a humildade de perceber que podemos ser ensinados por outras existências humanas e não humanas e alimentar-se física e espiritualmente desses encontros.
Alguns gestos em direção a Cura das Relações
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Interromper a hiper-individualização através de práticas de afirmação de nosso estado como parte integral da natureza;
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Cultivar relações de respeito, humildade e generosidade com outros humanos, com outros seres vivos, com os encantados e com a Terra;
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Práticas para fortalecer o sentido de pertencimento visceral com a Terra sem necessidade de entendimento ou idealização;
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Responsabilidade com a vida de todos os parentes, dos encantados e das próximas gerações.