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CURA DAS

TROCAs

A casa construída pelo branco, também chamada em alguns contextos como modernidade ou colonialidade, é fundamentada em um tipo de economia exclusivamente monetária, centrada no ser humano e na acumulação de dinheiro, de capital. Para muitas pessoas, em especial para aquelas que acreditam que as únicas alternativas existentes são capitalismo ou socialismo, é impossível sequer imaginar alguma outra possibilidade econômica para fora dessa lógica, limitando-se os esforços críticos (quando existem) a pequenas correções  de rota e proposições (muitas vezes ineficazes) de tentar reduzir paulatinamente as desigualdades e injustiças econômicas.

 

As pesquisas realizadas pela Teia ao redor desta Cura vão em uma direção radicalmente diferente, tendo por base um sentido solidário de economia, com enfoque na não acumulação, no amparo ao próximo e em um modo de reciprocidade relacional, e por vezes não linear, que envolve os humanos desta geração, os ancestrais passados e os por vir, assim como os seres não humanos, em especial o trabalho invisibilizado desses.

 

Ubiraci Pataxó questiona o próprio norte do desenvolvimento nas economias ditas modernas, fracionando a palavra des-envolvimento, e entendendo esse conceito como uma perda gradual do pertencimento, do envolvimento com a Terra, e da confiança em sua capacidade de sustentação de todos nós. A perda dessa confiança e desse envolvimento, argumenta, leva à necessidade de estocar e acumular, o que é radicalmente diferente da abundância oferecida pela Mãe-Terra e a enorme rede de seres e relações que é parte dela. Essa rede vai além dos aspectos materiais, e envolve também processos psicológicos e espirituais. Como ele mesmo explica, "Para os povos Indígenas, a mata é abundante, e o que ela nos serve é o suficiente, até quando ela não nos serve nada."

Essa visão contraintuitiva para as pessoas socializadas na modernidade, é também compartilhada pelo povo Tremembé da Barra do Mundaú. Mateus Tremembé aponta como o ter pouco é capaz de ensinar a cuidar, amparar e a dividir, e a mostrar também que a cura individual não tem serventia, ela precisa ser coletiva. É justamente o dar, o compartilhar, que gera abundância. Esse pensamento, recorrente em vários povos Indígenas, entende a pobreza não como a ausência de bens materiais, mas sim como o não querer compartilhar, o que adiciona camadas além das econômicas às ideias de pobreza e riqueza.

Segundo Mateus, o próprio alimento ensina ao povo essa prática. Na colheita do milho, por exemplo, os melhores milhos não são comidos, mas reservados, secados, e distribuídos para as famílias da aldeia, o que possibilita no ano seguinte 150 famílias comendo os melhores milhos da colheita anterior. O compartilhar como prática de cura reforça a importância de cada ser para nossa sobrevivência, desde os elementos, como ar e água, até as plantas e animais. Ao cuidar da água, por exemplo, e garantir que ela seja compartilhada com as gerações futuras,

estamos oferecendo amparo aos que estão por vir.

O Cacique Ninawá Huni Kui entende a falta de vontade de compartilhar como uma doença, ligada sobretudo a um sentido de separação uns com os outros e da natureza como um todo. Esse sentido de separação, para ele, é uma ilusão, afinal a Mãe-Terra oferece o suficiente para todos viverem dignamente, e o excesso de acúmulo, seja de terras ou de riquezas, produz uma ferida nesse ciclo. Como forma de combate a essa enfermidade, ele entende ser fundamental reaquecer os corações da humanidade, especialmente para o fato de que um irmão, um parente (humano ou não) neste momento, tem sede, tem fome e enfrenta dificuldades, e isso deveria ser uma responsabilidade e uma dor para todos nós.

As relações excessivamente comerciais são uma ferida inclusive para os próprios povos Indígenas. O processo colonial, fundamentalmente o ciclo da borracha, criou a figura do "patrão" dentro das comunidades Huni Kui, que dialogava com os seringalistas e ganhava mais material de trabalho e mais liberdade, mas acabava tirando dos outros.

Esse momento gerou famílias que querem ser mais dominantes politicamente do que outras famílias (o que persiste até hoje). A partir da reflexão coletiva de que o trabalho da natureza no território é tanto invisibilizado quanto de valor inestimável, o compartilhar de partes da produção de cada um com sua comunidade, da mesma forma que a Mãe-Terra faz, passou a ser estimulado como uma das práticas de Cura das Trocas.

O povo Pitaguary aponta que a tradição das trocas dos alimentos é um alicerce no qual muitas outras trocas ocorrem, fortalecendo a comunidade e a sua relação com a Terra. Rosa Pitaguary lembra por exemplo das antigas farinhadas, nas quais o responsável pela casa de farinha reunia a comunidade para fazer a farinha, e as pessoas levavam de volta para suas casas além do biju, histórias, canções e formas de fazer remédios trocadas entre as mulheres da comunidade. Também a colheita da banana no alto da serra, ou a lavagem de roupas no rio, eram momentos de fortalecimento da comunidade e de amparo àqueles que precisavam.

As histórias se configuram também como trocas intergeracionais, formas dos saberes dos troncos velhos e da mata chegarem às novas gerações. Nadya Pitaguary conta sobre o poço dos caboclos velhos, local de encontro e troca entre os guerreiros caçadores. Nesses lugares, trocavam-se cascas para fazer remédios que vinham de lugares diferentes, e uma série de saberes e relações com a mata.

 

As trocas com os animais também são uma constante para o povo Pitaguary, construídas a partir de diálogos que envolvem a sensibilidade de perceber os sinais dos animais. Estes vão desde os avisos dos cães que cuidam da segurança física e espiritual, até a sorte na mata trazida pelos grilos, passando pelas as tristezas de partida anunciadas pelo pássaro da noite, pela coruja branca e pelos os resultados das batalhas assobiados pelo beija-flor preto. Todas essas trocas e relações são pautadas e apoiadas pela Mãe-Terra, em seu ciclo constante de reciprocidade e abundância. Como conta o Pajé Barbosa, a semente gera frutos, que são comidos, e geram mais sementes. Já a árvore, quando morre vira adubo, mas antes disso oferece sua casca para ser morada do besouro.

Em um espaço breve no tempo presente, entre todos esses frutos, sementes e gerações, vive hoje uma mangueira sagrada, terreiro do povo Pitaguary, e local onde essas relações físicas e espirituais se organizam e equilibram.

Yoran Fulni-ô, refletindo sobre equilíbrio e trocas mútuas entre seres e gerações, reforça que a capacidade de se relacionar amplamente com o todo, com a existência em seus planos materiais e espirituais, é uma capacidade intrínseca em todos nós, e que é preciso recuperar essa capacidade naqueles que a perderam. Para o povo Fulni-ô, o grande espírito e os seres da mata respondem  com alegria  quando vêem as pessoas se ajudando e fazendo trocas de conhecimento, de alimentos e de adornos, pois tudo isso faz parte de princípios de boa convivência, fortalece a união e ajuda a quebrar o sentido de separação presente na modernidade.

Tal princípio é muito ligado ao território do povo Fulni-ô, um território seco e árido no nordeste do Brasil, com um inverno (período chuvoso) bastante curto. Sem esse sentido visceral de troca e apoio mútuo ativados, a existência do povo estaria muito mais ameaçada.

Yoran reforça que os maus tratos à mãe natureza têm produzido escassez diversas, como de alimento, em muitos outros territórios, e a solidariedade e o fortalecimento da troca serão fundamentais para fortalecer a existência e a resistência e para reequilibrar o metabolismo da Terra, o que gera alegria nos seres da natureza.

 

Alguns gestos em direção a Cura das Trocas

  • Práticas que enfocam a necessidade de circulação de recursos, a reciprocidade, a responsabilidade trans-geracional, e a responsabilidade e reciprocidade com os encantados;

  • Disposição ao amparo, a trocas econômicas solidárias e economias não monetárias;

  • Cultivar práticas de não acumulação;

  • Confrontar o (des)envolvimento e (re)envolver tudo com tudo e o todo.
     

Yoran Fulni-O Cura das Trocas
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Nádia Pitaguary Cura das Trocas
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