CURA DOs
PENSAMENTOs
Quem deu esse nó não soube dar
Quem deu esse nó não soube dar
Esse nó está atado e eu desato já
Esse nó está atado e eu desato já
Ô desenrola essa corrente deixa o Índio trabalhar
Ô desenrola essa corrente deixa o Índio trabalhar
(Canto de resistência entoado por alguns povos Indígenas, como os Pitaguary)
Para muitos não Indígenas, o pensamento é visto como algo separado, que praticamente não se relaciona com o resto do corpo. Essa lógica é contestada pelas comunidades da Teia.
Para os Fulni-ô, por exemplo, o pensamento tem matéria, uma existência física e palpável como nossos braços, pernas ou órgãos, e é o local onde reside a força do corpo humano. O pensamento é também o centro da espiritualidade, a conexão com os seres sagrados, e a ponte pela qual nos entregamos aos seres que são invisíveis (porém existentes).
A materialidade do pensamento é reforçada pelos Pitaguary, cujos processos de cura envolvem ativamente o pensar, especialmente em locais sagrados como oterreiro do cajueiro, e a elevação desses pensamentos/matéria através do uso do fogo, das ervas e da defumação. O pensamento do Pajé também estabelece relações de cura, tanto dirigindo-se diretamente para os enfermos como recebendo os pedidos daqueles que necessitam de cura.
Existem inclusive ocas de cura voltadas para o pensar no pajé, para que ele possa curar à distância.
Também os Huni Kui percebem a capacidade dos pensamentos de viajar materialmente através do espírito do vento, enfatizando que o trabalho espiritual do pensamento não se restringe a esse tempo de agora, podendo se direcionar para os ancestrais e para o futuro das próximas gerações. Para os antigos do povo, somos capazes de entender tanto os acontecimentos de outros tempos quanto os pedidos da natureza e dos animais (embora essa seja uma capacidade perdida pela maior parte da humanidade).
Os Tremembé da Barra do Mundaú utilizam os cantos e rezos como forma de firmar os pensamentos e receber as mensagens e orientações dos ancestrais, alertando para os perigos da travessia. Como povo do mar, suas canções sempre têm relações com as águas, e são a própria travessia dos encantados e seres de luz.
"Viajo sete léguas, pelo raio de sol.
Viajo sete léguas, pelo raio de sol.
Em cima daquele morro, faz a praia do lençol.
Em cima daquele morro, um raio de sol brilhou.
Em cima daquele morro, foi que um índio me chamou"
Para uma pessoa criada e socializada em instituições coloniais, como por exemplo aescola, esse tipo de relação com os pensamentos pode ser vista com desconfiança, ceticismo, e até desacreditada. Esse tipo de comportamento é fruto de uma arrogância cultivada por séculos pelo colonialismo, e precisa ser combatido com vigor.
Ubiraci Pataxó, seguindo essa linha, clama para uma descolonização dos pensamentos e ideias de forma que o conhecimento, ensino e aprendizagem aconteçam para além do espaço acadêmico, e legitime-se o aprender de várias formas. A diversidade na ecologia de saberes e espaços de aprendizagem é o que possibilita pensamentos e fazeres diferentes, e nos afasta dos corpos máquina, poluídos pelo excesso de instruções das normatividades e dos padrões desejados pelas instituições coloniais.
Assim como o corpo, os pensamentos também precisam ser cuidados. Uma das formas de se fazer isso é através de banhos de limpeza, para se livrar de sujeiras e ruídos e produzir uma percepção mais apurada das múltiplas camadas que compõem a realidade, explica Mateus Tremembé. Para preparar esses banhos, ele continua, é necessário deixar as ervas e a água ao relento durante a noite, para entrar no mistério oriundo da boca da noite e do invisível. A energia do sol, a luz, também são necessárias, mas o pensamento é incompleto sem o encontro com o desconhecível, sem a humildade para encarar de frente os limites do nosso conhecimento.
O povo Pataxó sugere ainda que um dos processos capazes de contribuir para essa limpeza e consequente cura dos pensamentos envolve os caminhos pelos quais o pensamento se transforma em fala, e recomenda uma passagem destes pelo coração antes de chegar à boca, para (re)bravar o mundo desbravado e (re)envolver o mundo (des)envolvido. Aqui de novo convidamos para um
pensamento com matéria, com corpo integrado, participante e parte da Mãe-Terra. O pensamento re-envolvido, propõe Rosa Pitaguary, se distancia do pensamento egoísta, “des-envolvido”, focado no indivíduo e em suas próprias necessidades, e se direciona para o coletivo, para o bem-estar de todos e do todo. Não há cura possível para um pensamento focado no indivíduo, porque o pensar da Mãe-Terra é necessariamente coletivo, a serviço de todos os seres. É assim que se expressam por exemplo o sol, a chuva, o vento e o solo fértil no qual germinam as sementes.
Alguns gestos para a cura do pensamento
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Reverência ao mistério do sagrado;
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Valorização dos conhecimentos ancestrais humanos e não humanos;
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Encontro de conhecimentos e desconhecimentos, entre o que sabemos e o que não sabemos, com humildade;
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Reconhecimento do valor das histórias e tradições orais, e das diferenças entre esse tipo de conhecimento e o conhecimento proposto pela "ciência".